segunda-feira, 9 de abril de 2012

A presunção de inocência como geradora de impunidade - por Marcelo Cunha de Araújo

Transcrevo a seguir um dos excelentes artigos de autoria do Promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo, professor do curso de Direito da PUC/MG e autor, dentre outras, da obra "Só é preso quem quer: impunidade e ineficiência do sistema criminal brasileiro" - leitura, aliás, recomendadíssima, assim como a visita ao blog do autor.

O texto em questão foi publicado no caderno Direito & Justiça, do jornal "Estado de Minas", edição de 19 de maio de 2008.


A presunção da inocência como geradora de impunidade


Todos os cidadãos, de uma forma geral, já ouviram falar no festejado princípio da presunção da inocência. A Constituição da República, em seu art. 5o, LVII, conceitua o princípio informando que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Estudando ingenuamente o conteúdo normativo exposto no texto constitucional, poder-se-ia chegar à conclusão de que se trata, apenas, de uma aquisição importantíssima, que remonta às ondas solidificadoras de direitos fundamentais que tiveram início a partir das positivações constitucionalistas revolucionárias burguesas.

Ocorre que, como nada  existe “em si”, em essência, sempre dependendo do uso fático e fenomenológico que os diferentes atores jurídicos e sociais fazem do objeto, seria interessante que analisássemos não o princípio em sua ontologia (como ele seria perfeito num mundo dedutivo totalmente regido pelas regras da razão), mas como ele se apresenta na realidade do sistema criminal brasileiro e, no mesmo diapasão, a que vinculações de poder estaria essa construção verbal atrelada, já que se trata de uma forma de discurso e, como sabemos, inexiste um discurso (principalmente jurídico) neutro e apolítico.

Na prática processual penal, sabem os que lá operam, além dos cidadãos leigos bem informados, que a garantia de que ninguém é culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória acaba por servir como um escudo protetor muitas vezes intransponível. Tal se dá pela interpretação recorrente e equivocada de que os princípios constitucionais fundamentais são aplicados na metodologia do “tudo ou nada” e de que eventuais concessões e mitigações à amplitude da garantia significaria, de per se, um retrocesso inominável a um regime ditatorial e autocrático, muitas vezes até propalado retoricamente como fascista.

Assim, pela interpretação recorrente, porém não unânime, dos tribunais, até que o último recurso protelatório do réu criminoso tenha sido julgado (o que, sabemos todos, levará vários anos), qualquer restrição a direito do acusado seria verdadeiramente uma “antecipação de pena”, devendo, segundo esses doutos, ser evitado a todo custo. Ocorre que, em um Estado Democrático de Direito pluralístico, não há sentido em se falar em direitos fundamentais absolutos, os quais, por sua importância suprema, devam ser sempre colocados como superiores a todos os outros interesses. Tudo dependerá, em verdade, dos casos concretos em que tais conflitos normativos aparentes ocorrem e, mais importante, da solução imparcial de órgãos jurisdicionais isentos.

Nessa linha, não há sentido jurídico, segundo as modernas teorias do discurso, na  aplicação equânime do princípio da presunção da inocência a réu que se encontre com investigações em estágio inicial e a outro com denúncia já oferecida pelo Ministério Público. Logo, no mesmo passo, a necessidade de mitigação do princípio mostra-se claramente, outrossim, quando um órgão jurisdicional isento se pronuncia pela culpabilidade do agente e pela necessidade de aplicação de pena. Com ainda muito mais propriedade, quando uma decisão do Tribunal de Justiça é proferida no sentido da condenação do réu, o princípio da inocência deveria ir perdendo aquela força inicial que existia antes do pronunciamento de tantos servidores públicos isentos que, por sua interpretação, atestam que o acusado não é inocente.

Vê-se, com efeito, que o adequado para um funcionamento razoável do sistema é a manutenção, na maior medida do possível, da preservação do princípio da presunção da inocência. Ocorre que, em contraposição a outros princípios do Estado Democrático, como os da ordem social, da efetividade da lei penal, o princípio republicano da correta administração do erário, entre outros, já havendo diversas decisões no sentido da punibilidade, nada mais natural do que a mitigação parcial do instituto. Para tanto, medidas como a fiança, o arresto e o seqüestro de bens do acusado e de seus familiares, a prisão provisória por ocorrência de consolidação da culpabilidade, entre diversas outras, deveriam ser reavivadas.

Apenas a título de exemplificação, para não se pensar que se sugere o impossível, atualmente, nos EUA, a regra de se responder ao processo em liberdade passa a ser exceção quando se angariam, durante a investigação, elementos suficientes de autoria e materialidade capazes de sustentar a acusação. Nesse momento, em algumas hipóteses, poderá o juiz permitir ao réu responder ao processo em liberdade, sempre mediante o pagamento de uma fiança substancial (que dependerá da natureza do delito e do patrimônio do acusado). Contudo, caso o indivíduo seja condenado em primeira instância, apenas poderá recorrer preso, salvo raríssimas exceções. Verifica-se, a toda luz, que o sistema brasileiro funciona no exato oposto do americano, obtendo, obviamente, quando comparado em termos de efetividade, resultados ínfimos.

Sem uma revisitação e reestruturação da forma de pensar, como um todo, do sistema penal, pouco ou nada será alterado em sua ineficiência, principalmente no que concerne aos crimes do colarinho branco. Em realidade, o princípio apenas se presta a impossibilitar a punição a pessoas aptas a prolongar o processo pelo máximo tempo possível (normalmente os acusados ricos, com uma boa assessoria advocatícia). A pergunta que deve ser feita, entretanto, é: será que existe realmente interesse na mudança do sistema criminal?