segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Quem tem Constituição não precisa de garantismo penal

Devemos reconhecer que os garantistas foram engenhosos. Eles tiveram pelo menos 2 (duas) sacadas sensacionais. A primeira, no momento de definir o nome do clubinho. É como se nós resolvêssemos criar um "Clube dos Honestos". Quem está do lado de fora, automaticamente fica sem o predicado. E ninguém quer ser o pária da história. Todo mundo quer dizer que é garantista. Além de soar bonito, é um vistoso cartão de visitas - mesmo que não se saiba muito bem o que significa aquilo que está escrito nele. Só nessa aí já se arrebanha um bocado de gente para engrossar as "fileiras do bem".

A outra jogada de tirar o chapéu foi associar o direito penal ao direito constitucional. Aliás, mais precisamente: foi se autoconceder o monopólio de dizer o que é o direito penal constitucional. Não se vê um único garantista que não diga, com um palavrório todo empolado, que é preciso fazer uma "releitura constitucional" do direito penal, uma "interpretação constitucional" dos tipos penais, e por aí vai.

Tudo bem, todos concordamos que o direito penal só se legitima na Constituição. O problema está na visão garantista daquilo que é ou não constitucional. E, nesse assunto, o repertório do garantista é tão vasto quanto o vocabulário de um papagaio recém-domesticado. São basicamente 2 (duas) expressões: "Estado Democrático de Direito" e "dignidade da pessoa humana". Muitos até sabem uma terceira (normalmente é "presunção de inocência"). Sempre que você, leitor amigo, se deparar com essa linha de argumentação, considere acionar o Corpo de Bombeiros para pegar o bichinho.

Vejam só um exemplo: para os garantistas, só o chamado "direito penal mínimo" (isto é, que incrimine o menor número possível de condutas) é capaz de se conformar ao "Estado Democrático Direito" e respeitar a "dignidade da pessoa humana" - ou seja, só o "direito penal mínimo" pode ser um direito penal constitucional. Isso é um verdadeiro mantra nas faculdades e nos cursos preparatórios para carreiras jurídicas.

Os garantistas têm verdadeira ojeriza ao que eles chamam de "inflação do direito penal" - ou seja, o direito penal que prevê muitas condutas criminosas. O grão-garantista Luigi Ferrajoli, ao criticar a previsão legal de crimes contra a administração pública, a atividade judicial e a fé e a economia públicas, afirma, com todas as letras, que "o princípio de lesividade permite considerar 'bens' somente aqueles cuja lesão se concretiza em um ataque lesivo a outras pessoas de carne e osso" (Direito e Razão - Teoria do Garantismo Penal, RT, 2010, p. 439). Em outras palavras: seria inconstitucional um direito penal que criminalizasse condutas outras, que não aquelas que atingissem apenas pessoas de carne e osso. É por isso que eu me pergunto se o garantista realmente sabe o que é uma Constituição (no caso, a Constituição brasileira).

A higidez da administração pública é protegida expressamente pela nossa Constituição, que estabelece que os atos de improbidade administrativa importarão diversas sanções, sem prejuízo da ação penal (art. 37, parágrafo 4º). Também na Constituição está escrito que as condutas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores à obrigação de reparar o dano, bem como às sanções penais cabíveis (art. 225, parágrafo 3º). Enfim, vários outros bens coletivos (que não se referem diretamente a pessoas de carne e osso) são protegidos constitucionalmente - ordem econômica e financeira, economia popular (art. 173, parágrafo 5º), relações de consumo (art. 5º, XXXII), saúde pública (art. 196), etc. Como alguém pode sustentar, então, que só é constitucional um "direito penal mínimo", quando a própria Constituição instituiu uma enormidade de bens jurídicos?

Sem contar que, defendendo isso, os garantistas estão dando um tiro no pé - ou na asa. Afinal, ai dos pobres  papagaios se os crimes ambientais fossem inconstitucionais...

A verdade é que a dicotomia "direito penal mínimo" versus "direito penal máximo" deve ser vista com muitas reservas. O direito penal não deve ser nem máximo, nem mínimo. Ele deve ser necessário. E quem diz o que é necessário é a Constituição.

Essa idéia de que só é constitucional um direito penal "mínimo" é quase uma blasfêmia - que, diga-se de passagem, já nasceu com pelo menos 200 (duzentos) anos de atraso. O direito penal que protege "pessoas de carne e osso" só faria sentido se a evolução do constitucionalismo não tivesse feito surgir os direitos fundamentais de 2ª e 3ª gerações - que carecem de proteção igualmente efetiva. Direitos individuais de pessoas de carne e osso merecem tanta proteção quanto os direitos sociais e coletivos. Todos têm o traço da fundamentalidade. Enquanto os garantistas não compreenderem isso, eles até poderão dizer que são constitucionalistas. E nós só poderemos fazer um comentário a esse respeito: veja aqui.

4 comentários:

Felipe Araujo disse...

Caríssimo Adriano,
não posso deixar de tecer alguns humildes comentários ao ótimo texto postado, no intuito não de corrigir, muito menos de criticar, mas pura e simplesmente de tentar enriquecer o debate.
A primeira sacada a que você se refere não se trata, a bem da verdade, de uma criação do "garantismo penal". Trata-se da mais evidente aplicação prática das lições do marxista Antônio Gramsci. Em resumo, sua teoria estabelece que não importa o conteúdo do conhecimento (se válido ou não) desde que seja transmitido pela intelligentsia. Vale a pena conhecer um pouco das idéias de Antonio Gramsci antes de estudar o fenômeno do garantismo penal. Sugiro o seguinte texto: http://www.olavodecarvalho.org/livros/negramsci.htm . Aliás, o viés revolucionário do garantismo penal é tão evidente, que o próprio Bobbio, ao prefaciar o malfadado "Direito e Razão", diz não se saber exatamente onde se vai chegar com o garantismo penal. Seus idealizadores pretendem nos convencer a seguirmos os seus passos sem sabermos exatamente qual será o resultado. Mera coincidência entre a aplicação concreta do garantismo no Brasil - com os seus 50 mil homicídios por ano - e o comunismo - e suas centenas de milhões de mortes - não é mera coincidência.
Quanto à segunda jogada, você acertou em cheio na conclusão de que certamente os garantistas brasileiros nunca leram o texto constitucional; além dos dispositivos citados no texto, existem vários outros mandamentos criminalizadores na Constituição, inclusive no artigo destinado à proteção dos direitos fundamentais. Ler a Constituição com os olhos voltados apenas ao direito penal mínimo não é interpretar, é recortar o texto e separar apenas o que me interessa; no caso dos garantistas, eles lêem apenas as garantias do réu e nada mais. Aliás, não te parece que os penalistas atuais odeiam o Direito Penal?

Adriano D. G. de Faria disse...

Grande Felipe, valeu a dica da leitura. Às vezes também tenho essa impressão da existência de identidade entre alguns fundamentos do garantismo penal e de algumas doutrinas ditas "de esquerda". No livro do Ferrajoli dá pra ver isso em algumas passagens (tem um capítulo em que ele fala de quem é o "forte" e quem é o "fraco" para o direito penal. É bisonho). Quanto ao ódio que os penalistas de hoje nutrem pelo direito penal, creio que essa atitude rende sobretudo prestígio e dinheiro. O garantismo penal é um dos grandes alimentadores do acesso à academia e aos tribunais e, é claro, dos bolsos de vários "doutrinadores" e das bancas de advocacia criminal. C'est la vie. Um abraço.

Anônimo disse...

Adriano, mais uma vez parabéns pelo brilhante texto! Muio inteligente e engraçado! Grande abraço

Adriano D. G. de Faria disse...

Muito obrigado, Marcelo, pela honra da sua visita. Um abração!