segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Uma justificada falta de modéstia

Nunca li de cabo a rabo "Direito Razão - Teoria do Garantismo Penal", de Luigi Ferrajoli. Tomei emprestado na biblioteca algumas vezes e li, sim, uma boa parte, registrando algumas anotações em separado. Na verdade, li o quanto a minha consciência aguentou. O bastante para saber que a parte que ficou faltando não poderia jamais redimir a que havia sido lida. Enfim, o suficiente para saber o quanto é dispensável e essencial. Dispensável porque não agrega absolutamente nada em termos de valores e conhecimento - aliás, pelo contrário, desmoraliza e emburrece. Essencial porque muita gente considera essa obra - às vezes sem nunca sequer tê-la manuseado! - a "bíblia" do direito penal contemporâneo. Daí a essencialidade de lê-la e estudá-la para mostrar a quem não a conhece o quanto ela não é nada mais do que "prosopopéia flácida para acalentar bovinos".

Mas não é exatamente isso o que me faz ficar tentado a pecar pela soberba. O que me deixa realmente envaidecido e orgulhoso (perdoem-me pela sinceridade) é o tamanho do bem que fiz hoje à humanidade: comprei um exemplar de "Direito e Razão". Despojei-me de R$148,80 (cento e quarenta e oito reais e oitenta centavos) - incluindo o frete - para retirar de circulação um volume dessa obra. Embora isso pareça um ato banal, trata-se de uma ação quase heróica.

Graças a esse desprendimento, uma pessoa - talvez um inocente estudante de direito - vai ter uma partícula infinitesimal a mais de dificuldade para comprar o livro, e eventualmente prefira comprar algum outro melhor. Se isso ocorrer, terei contribuído para que um aluno tenha tido uma formação um pouco mais hígida. Caso esse aluno venha a ser futuramente um operador do direito penal (promotor, advogado, juiz, delegado...), aí então esse ato heróico e isolado vai multiplicar efeitos. Parafraseando o detetive John Hartigan, interpretado por Bruce Willis em "Sin City"*: uma certa quantidade de dinheiro vai embora; um exemplar de um livro estúpido sai de circulação. It's a fair trade.

*O link leva à reprodução de uma cena forte do filme, que possui classificação indicativa para maiores de 16 (dezesseis) anos.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Falsificador de carteiras de habilitação é condenado a 18 anos de prisão

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve a condenação do falsificador de CNH's Reinaldo Macedo Nunes, que promovia o derramamento de documentos adulterados em diversas regiões do Estado.

Em 24 de março de 2009, Ronílson José Gomes de Andrade foi preso na posse de 8 (oito) CNH's falsificadas, as quais seriam destinadas à venda na região de Diamantina/MG. Após proposta de delação premiada feita pela 2ª Promotoria de Justiça, ele confessou que fazia parte de um grupo especializado em falsificar CNH's com base em Contagem/MG, região metropolitana de BH, liderado por Reinaldo Macedo Nunes.

Ao final, Ronílson José Gomes de Andrade foi condenado a 8 (oito) anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, e 40 (quarenta) dias-multa, enquanto Reinaldo Macedo Nunes teve sua pena definitiva fixada em 18 (dezoito) anos de reclusão, também em regime fechado, e 120 (cento e vinte) dias-multa.

Dois aspectos podem ser destacados nesse caso: o primeiro, relativo à delação premiada do corréu, que, em troca da diminuição de 1/2 (metade) da sua pena, possibilitou a descoberta do líder do bando. O segundo, consistente no reconhecimento do concurso material na falsificação das 8 (oito) CNH's, em detrimento da continuidade delitiva.

Em linhas gerais, a continuidade delitiva é uma ficção jurídica que beneficia o criminoso, fazendo com que ele receba apenas uma das penas, com um pequeno acréscimo. Por sua vez, o concurso material possibilita que o criminoso receba todas as penas somadas.

No caso, o crime pelo qual os réus foram condenados (art. 297, do Código Penal) tem pena que varia de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Caso tivesse sido aplicada a continuidade delitiva, a sanção seria fixada dentro desses limites e haveria apenas um acréscimo de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços).

Por outro lado, como foi reconhecido o concurso material, foi aplicada a pena dentro dos limites de 2 (dois) a 6 (seis) anos, mas houve sua multiplicação por 8 (oito) - quantidade de CNH's falsificadas.

O Poder Judiciário acatou o argumento da Promotoria no sentido de que o criminoso profissional ou habitual merece tratamento penal mais rigoroso, sendo incompatível a aplicação da continuidade delitiva, a fim de se evitar o estímulo à reiteração de condutas ilícitas.

A íntegra das decisões (o TJMG proferiu um acórdão quando do julgamento das apelações e dois acórdãos por ocasião do julgamento dos embargos infringentes) pode ser acessada aquiaqui e aqui.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Carta aberta aos membros do Congresso Nacional a respeito da PEC 56/2011

Excelentíssimos Senhores Deputados e Senadores,

Confesso que não sei bem como começar esta carta. Na realidade, já há algum tempo que eu tenho vontade de escrevê-la, mas ainda não o fizera por acreditar que ela jamais mereceria a atenção de Vossas Excelências. Agora que eu resolvi redigir essas mal traçadas linhas, talvez não tenha sido uma boa idéia publicá-las neste blog. Afinal, corro o risco de que os senhores não dêem muita importância ao seu conteúdo, por acharem que blogs são coisa de gente jovem demais - e por isso supostamente imatura. Posso lhes assegurar que não é bem assim, e, por isso, peço-lhes que tentem vencer essa aparente barreira inicial. Prometo tentar ir direto ao assunto para não tomar muito do precioso tempo de Vossas Excelências.

É de meu conhecimento que em 12 de julho de 2011 foi apresentada em Plenário a Proposta de Emenda Constitucional 56/2011, que, a pretexto de aperfeiçoar o Poder Judiciário e o Ministério Público, trazendo os candidatos mais qualificados e com maior vivência dos problemas jurídicos e judiciais, estabelece o mínimo de 30 (trinta) anos de idade e 5 (cinco) anos de atividade jurídica para ingresso nas respectivas carreiras.

Fiquei bastante assustado com essas restrições. Posso presumir - e essa presunção não admite prova em contrário - que Vossas Excelências têm conhecimento de que no Brasil a idade mínima para que a pessoa responda penalmente pelo seus atos é de 18 (dezoito) anos (art. 228, da CR/88). Muitos dos senhores, inclusive, são defensores da idéia de que esse limite deve ser até reduzido, por entenderem que nos dias de hoje indivíduos mais jovens que isso já têm plena consciência dos seus atos e maturidade suficiente para optar por praticá-los.

Além disso, creio firmemente que Vossas Excelências sabem que jovens de 16 (dezesseis) anos de idade já podem até votar (art. 14, parágrafo 1º, II, 'c', da CR/88). Estou certo, inclusive, de que muitos dos senhores foram eleitos com o voto dos jovens dessa faixa etária, que evidentemente votaram com maturidade e fizeram as melhores escolhas - os senhores são o exemplo vivo de que isso é a mais pura verdade.

Essas 2 (duas) situações, quando cotejadas com a PEC 56/2011, não deixam de causar perplexidade, pois se um indivíduo é maduro o suficiente para responder com sua própria liberdade pelas suas condutas e se ele pôde escolher Vossas Excelências para definirem os rumos do País, parece-me que não há qualquer impedimento a que ele almeje ser o que quer que seja, profissionalmente.

Mas a minha perplexidade aumenta quando eu leio a nossa Constituição e vejo que, para ser Vereador, exige-se o mínimo de 18 (dezoito) anos, ao passo que para ser Deputado Federal, Estadual ou Distrital, a idade mínima é de 21 (vinte e um) anos.

Quando eu tinha 10 (dez) anos de idade - e, portanto, estava ainda um pouco longe de ter 16 (dezesseis), 18 (dezoito) ou 21 (vinte e um) - fiz um trabalho escolar, a pedido da minha professora de 4ª série, no qual aprendi que a função do Poder Legislativo é elaborar as leis, a do Executivo é executar as leis, e a do Judiciário é fazer cumprir as leis - naquela época, naturalmente, eu nem sabia o que era Ministério Público, embora depois eu viesse a descobrir que sua função é a de defender a ordem jurídica; num bom português, fazer cumprir as leis, embora de forma um pouco diferente do Judiciário.

Vejam só que contra-senso: de acordo com a PEC 56/2011, para cumprir a lei será exigido ter mais idade do que para elaborar a lei.

Tudo bem que a tarefa de legislar, não por culpa de Vossas Excelências, esteja um pouco banalizada - afinal, mais de 15% (quinze por cento) das leis ordinárias (por favor, sem nenhum sentido pejorativo) elaboradas em 2011 tinham como finalidade instituir o dia de alguma coisa (dia do quadrilheiro junino, dia do calcário agrícola, dia do extensionista rural, etc.) ou denominar alguma obra (pontes, trechos de rodovia, viadutos, etc.).

Mas o fato é que quem tem o papel de fazer cumprir a lei não age de acordo com a sua vontade particular, mas apenas de acordo com a lei; quem tem o papel de elaborar a lei possui o poder de fazer a vontade que quiser. Até admito estar enganado, mas creio que, sendo assim, os controles deveriam ser mais rígidos justamente sobre quem faz as leis, e não sobre aqueles que são simplesmente encarregados de seu cumprimento. Quem faz cumprir a lei apenas age dentro dos limites do que já está posto; quem elabora as leis decide o que vai ser posto e o que deve ser cumprido.

Continuando o raciocínio, mas agora sob outra perspectiva, causa um pouco de estranheza o fato de se elevar a idade mínima para ser juiz ou promotor, mas não se fazer nenhuma menção a outras funções essenciais à Justiça, como a Advocacia e a Defensoria Públicas, ou mesmo à função de delegado de Polícia. É confiada a todos esses profissionais considerável parcela de autoridade - eles podem representar judicialmente os interesses de autarquias públicas (interesses públicos), ajuizar ações coletivas e prender pessoas! Por qual motivo, então, a PEC 56/2011 não quer aperfeiçoar também o ingresso na Advocacia-Geral da União, na Defensoria Pública e na Polícia Civil ou Federal? Se aperfeiçoamento é uma idéia positiva, é desejável que ela seja estendida a todos. Isso, aliás, também se aplica aos advogados privados.

Compreendo que a intenção de Vossas Excelências é realmente a de melhorar o Ministério Público e o Poder Judiciário. Sei que vários dos que assinaram a PEC 56/2011 foram ou são usuários dos serviços prestados por essas instituições, e podem eventualmente não ter ficado satisfeitos com o atendimento que lhes foi dispensado.

Mas realmente não me parece que o melhor caminho para esse aperfeiçoamento diga respeito à estipulação de uma idade mínima para ingresso nas respectivas carreiras. O que devemos evitar não são as pessoas jovens; são, sim, as pessoas imaturas, prepotentes, arrogantes e, sobretudo, desonestas e sem caráter. Se a Constituição prevê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII), parece-me razoável que os jovens não sejam presumidos bandidos ou incompetentes simplesmente pelo fato de serem jovens. O próprio "Estatuto da Juventude", votado e aprovado na Câmara dos Deputados no fim do ano passado, assegurará que os jovens terão direito à ocupação de espaços públicos de tomada de decisões, como reconhecimento do direito fundamental à participação (art. 6º), sendo vedada qualquer discriminação por causa de sua idade (art. 18, I).

Convenhamos, senhores Deputados e Senadores: os últimos escândalos de corrupção e de inépcia noticiados na imprensa nacional não tiveram nenhum protagonista que possa ser chamado de "jovem" - assim considerados os menores de 30 (trinta) anos de idade.

Além desses aspectos "filosóficos", Excelências, creio que limitar o acesso aos cargos do Poder Judiciário e do Ministério Público a pessoas maiores de 30 (trinta) anos de idade traria um grande e indesejável esvaziamento dessas instituições. Afinal de contas, atualmente, os bacharéis em Direito mais jovens têm entre 21 (vinte e um) e 23 (vinte e três) anos de idade. Depois de 7 (sete) a 9 (nove) anos de trabalho, qualquer pessoa tem enormes dificuldades em mudar o rumo profissional. São riscos muito grandes e escolhas muito sérias, que repercutem tanto no aspecto financeiro, quanto no familiar. Para Vossas Excelências compreenderem isso, basta olharem a seu redor: muitos dos senhores estão aí em Brasília há bastante tempo, e certamente sabem das dificuldades que terão de enfrentar quando resolverem parar de servir a sociedade para se dedicarem a outras funções.

Enfim, senhores Deputados e Senadores, com toda a minha sinceridade, creio que das várias mazelas que eventualmente atingem o Ministério Público e o Poder Judiciário, nenhuma está ligada à juventude. Por isso, não acho que esta seja algo essencialmente negativo. Mas se de tudo o que eu disse nada foi capaz de convencê-los, considerem que a juventude é um defeito que o tempo corrige. Já para a correção dos outros defeitos que envergonham a nação o remédio é outro e atende pelo nome de decência.

Respeitosamente,

Adriano Dutra Gomes de Faria

domingo, 22 de janeiro de 2012

Os 10 anos da morte de Francisco José Lins do Rêgo Santos

Neste ano lembramos os 10 (dez) anos da morte do promotor de Justiça Francisco José Lins do Rêgo Santos. Ele foi assassinado em 25 de janeiro de 2002, à luz do dia, na região centro-sul de Belo Horizonte/MG, quando se dirigia para o trabalho. Francisco Lins investigava, à época, um esquema de fraude em dezenas de postos de abastecimento da capital mineira, que consistia em adulteração de combustíveis e desvio de até 15% da arrecadação total de ICMS do Estado.

Reportagem do jornal "Estado de Minas" da data de hoje informa que dos 3 (três) réus condenados, 2 (dois) já se encontram livres e o terceiro - mandante do crime e dono de uma rede de postos investigados - cumpre pena em regime aberto, tendo em vista que foi condenado por outro delito posteriormente.

O décimo ano da morte de Francisco Lins - mártir do Ministério Público brasileiro, assim como o procurador da República Pedro Jorge - desperta nosso olhar para diversas questões que se relacionam com esse doloroso episódio. Vamos nos restringir a 3 (três) delas.

A primeira diz respeito aos frutos e ao alcance do trabalho daquele ícone do Ministério Público mineiro, que tornou a fiscalização de postos de combustíveis uma das bandeiras de trabalho da instituição, causando uma sensível diminuição das fraudes tributárias e ao consumidor praticadas por empresários do ramo. Segundo a reportagem do jornal "Estado de Minas", a sonegação tributária, que antes era de 15% do valor total do ICMS, passou a ficar em torno de 2% a 5%. Quanto à qualidade do combustível, as últimas análises detectaram irregularidades em 2,4% das amostras colhidas; só para se ter uma idéia, no Rio de Janeiro esse índice é de 13,2%.

A segunda questão que merece ser refletida tem a ver com a leniência da nossa legislação penal para com os criminosos, em geral, e os homicidas, em particular. Se um cidadão praticou um homicídio qualificado até 29 de março de 2007 e foi condenado a 18 (dezoito) anos de prisão, o tempo que ele vai ficar preso é o de exatos 3 (três) anos - ou seja, 16% da pena. Um "desconto" de 84% de cadeia.

Se esse mesmo homicídio tiver sido cometido após 29 de março de 2007, o criminoso permanecerá preso um pouco mais que 7 (sete) anos - o equivalente a 38% da pena; ou, em outras palavras, um "desconto" de 62% de cadeia.

Mal comparando, é como se você mobiliasse um apartamento todinho, com cama, estante, sofá, mesa, etc., e, na hora de pagar a fatura, o preço total cobrado fosse equivalente ao da televisão 3D, de led e 52". Obviamente, não espere conseguir esse "descontaço". A menos, é claro, que você mate alguém.

Enquanto os bandidos forem tratados como criancinhas mal-educadas, nós continuaremos ostentando índices de assassinato superiores aos das guerras civis mais sangrentas dos últimos 30 anos (aliás, isso pode ser assunto para uma futura postagem).

Por fim, a última questão diz respeito à estatura do Ministério Público. O exemplo e a memória de Francisco Lins nos mostram a todos que não se admite que pessoas de interesses pouco virtuosos - independentemente do segmento social ou instituição a que pertençam - dêem a medida do MP. O MP se mede com a sua própria régua e tem o tamanho de cada promotor ou procurador. Como diria o poeta amazonense Amadeu Thiago de Mello, "não somos melhores, nem piores. Somos iguais. Melhor é a nossa causa".

*Postagem editada às 17h25min de 25 de janeiro de 2012 para incluir um link que remete ao site do Ministério Público de Minas Gerais, onde podem ser obtidas informações complementares.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A Defensoria Pública e a síndrome de Heisenberg

Werner Heisenberg (1901-1976) foi um físico alemão que, em 1932, ganhou o Nobel de física. Para receber um prêmio desse porte sendo tão jovem, ele, obviamente, fez uma descoberta sensacional, enunciada como "princípio da incerteza". Em termos bem genéricos, é o seguinte: 1 (um) elétron pode estar em 2 (dois) lugares diferentes simultaneamente.

Ou seja, um elétron é aquela partícula para a qual você olha e, se alguém lhe perguntar, você não vai saber responder objetivamente onde ele está.

Um elétron quer estar em 2 (dois) lugares diferentes ao mesmo tempo. E está. A Defensoria Pública (DP) quer estar em 2 (dois) lugares diferentes ao mesmo tempo. E tem estado. A Defensoria está padecendo da síndrome de Heisenberg.

Ultimamente temos visto reportagens em profusão noticiando o ajuizamento de inúmeras ações civis públicas por essa valorosa instituição, pelos mais diversos motivos.


As causas em questão, evidentemente, são as mais nobres possíveis. Versam sobre direitos difusos fundamentais (proteção do meio ambiente, defesa do consumidor, tutela da moralidade administrativa, etc.). Todas se referem a interesses pertencentes não a uma só pessoa, individualmente, mas a toda sociedade, coletivamente. Então, ao atuar naquelas causas, a Defensoria age como protetora da sociedade.

Eis, porém, que hoje, ao visitar o site do Supremo Tribunal Federal (STF), vi uma notícia de que a DP - essa mesma que outrora atuava na defesa da sociedade - havia impetrado um habeas corpus requerendo a absolvição de um réu condenado por estelionato cometido contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que resultou em um prejuízo de R$4.000,00 (quatro mil reais) aos cofres públicos, argumentando que esse valor é insignificante. Essa é a DP atuando na defesa de interesse individual.

Outro exemplo: recentemente, em julgamento rumoroso do Tribunal do Júri da Comarca do Rio de Janeiro, após a condenação da ré, foi um defensor público aos microfones para comemorar a condenação. Isso mesmo: um defensor público atuou no julgamento como acusador.

Diga-me, então, leitor amigo: como pode uma mesma instituição estar ora de um lado, ora de outro? Afinal de contas, qual é o lado em que a DP deve estar?

Um bom lugar para procurarmos a resposta é a nossa Constituição. O art. 134, da Constituição da República de 1988, estabelece que "a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5°, LXXIV" (o grifo é meu).

O art. 5°, LXXIV, da Constituição, por sua vez, afirma que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos" (o grifo é meu novamente).

A leitura desses dispositivos constitucionais remete à conclusão de que a Defensoria Pública é incumbida de viabilizar o acesso à Justiça das pessoas pobres. Missão das mais honrosas, diga-se de passagem. Mas aí vêm as perguntas: quem são os necessitados representados pela DP na ação ajuizada contra a Chevron? Quem são os carentes - refiro-me aos carentes mesmo, e não aos "remediados" - prejudicados pelo caos aéreo? Quem são os pobres a quem aproveitará a condenação de servidores públicos por ato de improbidade? Enfim, atuar como substituta da sociedade é realmente a função da DP?

Essas perguntinhas não são irrelevantes. É que enquanto a DP canaliza recursos humanos e financeiros para atuar na defesa de interesses difusos de pessoas que não são carentes, aquelas verdadeiramente carentes estão indefesas por aí.

Basta corrermos os olhos pelas Comarcas ao nosso redor - aqui em Minas Gerais isso é sobremodo evidente - e perguntarmos se a DP tem ajuizado ações de investigação de paternidade em favor de crianças de pai desconhecido, ações de alimentos para os menores abandonados materialmente pelos pais, ações de indenização em favor de idosos motivadas pela cobrança extorsiva de juros de cartão de crédito, ações de divórcio, ações de guarda de filhos, e por aí vai.

Como visto, a DP padece mesmo de uma aguda síndrome de Heisenberg. O remédio o doutor já receitou: é Constituição, de 4 (quatro) em 4 (quatro) horas, até passar a crise.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Ministério Público expede recomendação ao prefeito e aos secretários municipais de Diamantina

A 2ª e a 3ª Promotorias de Justiça de Diamantina, com atribuições eleitorais e na defesa do patrimônio público, respectivamente, instauraram o procedimento nº 021612000001-5 para apurar eventuais irregularidades eleitorais ensejadas com a aprovação do Projeto de Lei 78/2011.

O referido Projeto, de autoria do Poder Executivo municipal e aprovado pela Câmara de Vereadores no fim de dezembro/2011, tem por escopo regulamentar a distribuição gratuita de bens, valores e serviços pelo Município de Diamantina no âmbito das políticas públicas de assistência social, educação e saúde.

Ocorre que o art. 73, parágrafo 10, da Lei Federal 9.504/97 - conhecida como a "Lei Geral das Eleições" -, estabelece que no ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

Além disso, a Lei Federal 9.504/97 proíbe que se faça ou se permita uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público.

Diante disso, as Promotorias de Justiça expediram recomendação ao prefeito e aos secretários municipais de Saúde, Educação e Desenvolvimento Social no sentido de que que se abstenham de distribuir gratuitamente, por si ou por servidores subordinados, bens, valores ou benefícios, ressalvadas as hipóteses legais.

Da mesma forma, foi recomendado que os referidos agentes públicos se abstenham de fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público.

O descumprimento da recomendação pode ensejar a adoção de medidas judiciais para cassação de eventual registro de candidatura ou diploma, bem como para responsabilização do agente público por improbidade administrativa.

Segue abaixo a íntegra do texto da recomendação:

Recomendação

Considerando que chegou ao conhecimento da 2ª e da 3ª Promotorias de Justiça de Diamantina/MG, por meio do periódico “Voz de Diamantina” – edição de 06 de janeiro de 2012 –, que, no fim do mês de dezembro/2011, a Câmara Municipal de Diamantina/MG aprovou o Projeto de Lei n° 78/2011, de autoria do Poder Executivo Municipal;

Considerando que a 2ª e a 3ª Promotorias de Justiça de Diamantina/MG tiveram acesso à íntegra do Projeto de Lei;

Considerando que referido Projeto instituiu benefícios eventuais a serem pagos às famílias cujos membros tenham renda per capita mensal igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo, para casos de nascimento, morte e situações de vulnerabilidade temporária;

Considerando que tais benefícios implicam, dentre outras coisas, em doações de cestas básicas, pagamento de taxas para expedição de documentos, locação de imóveis para abrigar pessoas, pagamento de tarifas de transporte para usuários solucionarem questões pessoais ou profissionais, fornecimento de vestuário, colchões, etc.;

Considerando que os benefícios eventuais instituídos por meio do Projeto de Lei 78/2011 não tinham anterior previsão legal e nem se encontravam em execução orçamentária no ano de 2011;

Considerando que o Projeto de Lei 78/2011 também estabelece diversas normas para distribuição gratuita de bens, valores e serviços no âmbito da assistência social, da saúde e da educação;

Considerando que diversos desses programas também não tinham anterior previsão legal e nem se encontravam em execução orçamentária no ano de 2011;

Considerando que no ano de 2012 serão realizadas eleições municipais para os cargos de prefeito e vereador;

Considerando que o art. 73, IV, da Lei Federal n° 9.504/97, proíbe que se faça ou se permita uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público;

Considerando que o art. 73, §10, da Lei Federal n° 9.504/97, estabelece que no ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa;

Considerando que o descumprimento das referidas normas constitui abuso de poder político, acarretando a suspensão imediata da conduta vedada, bem como a imposição de multa no valor de cinco a cem mil UFIR (art. 73, §4°, da Lei Federal n° 9.504/97);

Considerando que, além da sobredita sanção, o candidato eventualmente beneficiado ficará sujeito à cassação do seu registro ou do diploma (art. 73, §5°, da Lei Federal n° 9.504/97);

Considerando que a infringência das normas estabelecidas no art. 73, da Lei Federal n° 9.504/97, também sujeita o responsável às sanções da Lei de Improbidade Administrativa (art. 11, I, e art. 12, III, da Lei 8.429/92);

Considerando que as normas da legislação municipal devem estrita obediência às disposições da Lei Federal n° 9.504/97, uma vez que esta é a lei geral das eleições, sendo hierarquicamente superior à legislação local que versa sobre a matéria;

Considerando que a competência legislativa de todo e qualquer ente federado – inclusive do Município de Diamantina/MG – deve se submeter à Constituição da República, a qual também veda o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, bem como exige obediência à moralidade para o exercício do mandato (art. 14, §9°, da Constituição da República de 1988);

Considerando que o desequilíbrio das eleições e o abuso da máquina administrativa põem em risco a ordem jurídica e o regime democrático;

Considerando que compete ao Ministério Público a defesa de tais alicerces do Estado Democrático de Direito (art. 127, caput, da Constituição da República de 1988);

Recomenda-se ao Prefeito Municipal de Diamantina/MG, à Secretária Municipal de Desenvolvimento Social, ao Secretário Municipal de Educação e ao Secretário Municipal de Saúde:

a)- que se abstenham de fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público;

b)- que se abstenham de distribuir gratuitamente, por si ou por servidores subordinados, bens, valores ou benefícios, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior;

c)- que viabilizem o acompanhamento do Ministério Público Eleitoral acerca da execução financeira e orçamentária de programas sociais que impliquem distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios.

Requisita-se a cada um dos destinatários, no prazo de 10 (dez) dias, a remessa de informações à Promotoria Eleitoral e à Promotoria de Defesa do Patrimônio Público quanto ao cumprimento da presente recomendação.

Requisita-se ainda, no mesmo prazo, a remessa da íntegra do texto aprovado pelo Poder Legislativo.
 


 
Diamantina, 09 de janeiro de 2012.
Adriano Dutra Gomes de Faria
Promotor de Justiça
(Eleitoral)
Enéias Xavier Gomes
Promotor de Justiça
(Defesa do Patrimônio Público)


quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Questões que precisam ser respondidas. O resto é conversa pra boi dormir.


Li recentemente uma notícia que divulgava um estudo que concluiu que até o fim de 2011 o Brasil se tornaria a 6ª (sexta) maior economia do mundo. Posteriormente, li outras duas notícias nas quais o ministro da Fazenda, Guido Mantega, comentava que em 10 (dez) a 20 (vinte) anos o Brasil teria padrão de vida europeu e que antes de 2015 poderíamos nos tornar a 5ª (quinta) economia mundial.

Uma das faces mais cruéis do nosso "subdesenvolvimentismo" é exatamente a indecorosa diferença existente entre nossos entes federativos. A questão é tão complicada que me parece difícil até mesmo falar em "Brasil", designando uma coisa só, quando há estados e municípios com um nível de vida compatível com o dos lugares mais pobres dos séculos XVIII ou XIX, ao passo em que há outros que já se preparam, talvez, para avançar o século XXI. Nosso país tem internamente uma diferença de uns 200 (duzentos) ou 300 (trezentos) anos.

Nesse contexto, é quase um acinte, de tão mentirosa, a afirmação de que em 10 (dez) a 20 (vinte) anos teremos padrão de vida europeu. A primeira pessoa do plural não participa dessa festa. Se o ministro andar um pouco mais pelo Brasil - ou pelo menos dedicar um tempo maior à leitura dos jornais - ele certamente concordará com o que eu digo.

Recebi de um colega um e-mail com um excelente texto do jornalista André Trigueiro, publicado na edição de janeiro/12 da revista GQ. Transcrevo-o na íntegra logo abaixo. Responder às perguntas que ele propõe - e tomar uma atitude frente a elas - é condição essencial para que possamos sonhar com um padrão de vida europeu. A realização desse sonho, porém, está adiada sine die, dada nossa histórica inércia a respeito dessas questões.

"Que país é este?

O leitor haverá de me perdoar se nas linhas abaixo resolvi deixar de lado meu otimismo incorrigível para enumerar, de maneira resumida, assuntos sobre os quais o Brasil parece ter perdido a noção do perigo ou mesmo do bom senso.

Por que quando o assunto é agrotóxico, o país campeão mundial no uso dessas substâncias venenosas ainda tem legislação frouxa, fiscalização deficiente e uma estranha burocracia que impede a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de agir rápido quando se constata a necessidade de retirar do mercado um determinado produto de elevada toxicidade? Nas lavouras brasileiras são usados pelo menos dez produtos proibidos na União Européia, Estados Unidos e um deles até no Paraguai.

Por que quando o assunto é transgênico, os protocolos de biossegurança que antecedem o licenciamento de novas substâncias geneticamente modificadas parecem ser sistematicamente desprezados por parte da maioria dos doutores que integram a CTNbio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), onde os Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente têm direito a voto, mas são minoria?

Por que no país do pré-sal o precedente aberto pelo mega-vazamento de óleo da BP no Golfo do México (o maior desastre natural dos Estados Unidos) não serviu de lição para que evitássemos o vexame do vazamento da Chevron na Bacia de Campos, da forma como aconteceu, escancarando inúmeras lacunas de ordem legal, institucional e operacional para deleite das companhias que já operam 10 mil poços de petróleo no Brasil e transformarão em breve nosso leito marinho num gigantesco paliteiro com novos buracos abertos sabe lá Deus (ou Netuno) de que jeito?

Como foi possível aprovar um novo Código Florestal que foi alvo de questionamentos importantes da comunidade científica – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Academia Brasileira de Ciências e da própria Agência Nacional de Águas (ANA) – nos precipitando em uma direção cujos impactos ambientais, econômicos e sociais não temos como avaliar hoje com clareza?

Até quando celebraremos – especialmente os economistas de plantão – sucessivos recordes nas vendas de automóveis, sem considerar os violentos impactos sobre a mobilidade urbana? Até quando vamos ignorar os reflexos dos monumentais engarrafamentos, a qualquer dia e hora da semana, sobre nossa saúde (inalação de poluentes, e estresse físico e emocional para quem está preso dentro do seu próprio carro e, principalmente, para os que penam no transporte público), nossa qualidade de vida (menos tempo para o descanso, lazer ou para a família), o meio ambiente (agravamento do efeito estufa), a segurança pública (maior exposição dos motoristas a assaltantes), a gestão municipal (impossibilidade de atendimentos emergenciais, porque as ambulâncias, viaturas da polícia e carros de bombeiros não conseguem mais chegar rápido a seus destinos) etc?

Por que preferimos rotular todos os políticos de desonestos e corruptos, sem exceções, em vez de destacar a atuação heróica de alguns – são poucos, é verdade – mas que merecem nosso apoio porque sem eles tudo seria mais difícil? Lembrando Sêneca: 'A maior desgraça de quem não gosta de política é ser governado por quem gosta'.

Como é possível nos afirmarmos como potência mundial, se nossos indicadores na área da educação são simplesmente vexatórios? Como é possível aceitar que ainda tenhamos 14 milhões de pessoas que não saibam ler e uma legião de mais de 36 milhões de analfabetos funcionais, que mal conseguem assinar o próprio nome?

Como pleitear a condição de país desenvolvido se metade (56%) dos domicílios do país não tem acesso à rede de esgoto e onde a monumental letargia das diferentes esferas de governo impede qualquer previsão seguras de quando esse problema será resolvido?

Todas essas questões poderiam estar sendo tratadas de outro jeito se tivéssemos a coragem de repeti-las mais e mais vezes".

*Os interessados podem acessar o texto diretamente no blog do autor.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O dia em que conheci Zaffaroni - parte IV (recomendo que a leitura seja iniciada da parte I)

Mas o grande legado de Zaffaroni e sua trupe parece ser mesmo a reforma do Código Penal Argentino. Segundo o projeto elaborado, apenas 5 (cinco) crimes poderiam levar à prisão: homicídio, abandono de pessoa com resultado morte, extorsão mediante seqüestro, estupro, promoção ou facilitação da prostituição de menores de 12 (doze) anos, quando cometida com violência, fraude, abuso de autoridade, intimidação ou relação parental, conjugal ou educativa com a vítima, e traição à República (civismo???).

Para os outros crimes (incêndio, roubo à mão armada, lesões corporais gravíssimas, ainda que praticadas em seqüestro ou roubo, tráfico de drogas, etc.), o projeto previa pena mínima de 3 (três) anos - o que permitiria a suspensão condicional do processo. Idéia de Zaffaroni - ou simplesmente Z., como a ele se referem Siro De Martini e amigos.

Enfim, "En defensa del derecho penal" poderia muito bem ter como subtítulo "Introdução a Zaffaroni". Recomendo a leitura. Se alguém se interessar, inclusive, posso emprestar o livro. De uma coisa eu tenho certeza: se alguém reprografá-lo, "Z." certamente não veria nenhuma violação a direitos autorais. Afinal, ele é do eufemístico "clubinho do direito penal mínimo".

*Edito o post agora, às 22h15min, para incluir um link para uma entrevista concedida por "Z.". Veja aqui.

O dia em que conheci Zaffaroni - parte III (recomendo que a leitura seja iniciada da parte I)

Então, qual é o cartão de visitas que Siro De Martini utiliza para apresentar o "festejado" Zaffaroni? Palavras dele: "Sin dudas uno de los nombres claves para entender las raíces de la actual injusticia penal argentina es el de Eugenio Zaffaroni. No sólo él, claro está. Ni tampoco sólo sus discípulos, admiradores y lectores. Pero creo que no puede entenderse la impunidad argentina si se prescinde de las ideas de Zaffaroni. Y, quizás más aún, si no se recurre a sus actos. Es decir, a sus sentencias, actitudes y declaraciones. Zafaronni es, a mi juicio, como una síntesis de la ideología que ha conducido a la impunidad en la Argentina" (En defensa del derecho penal, EDUCA, 2008, p. 19).

Mas Siro De Martini - e os demais autores de "En defensa..." - são daqueles que "matam a cobra e mostram o pau". Eles transcrevem uma entrevista fornecida por Zaffaroni para um repórter da Revista Rolling Stone, nº 65, de agosto/2003: "R- Mandó mucha gente a la cárcel? Z- Sí, claro. Mucha gente, muchos años. R- Es horrible, no? Z- Sí, pero la diferencia es cómo lo encarás. Abrís un expediente y decís: 'A ver cómo zafo a éste'. Y si zafarlo no está bien, entonces digo: 'A ver cómo hago para que la lleve más aliviada'. Abriendo um expediente así, com esa idea, vas dormir tranquilo siempre. En definitiva, la función del juez penal es contener el poder punitivo, viste? Poder decir: 'Bueno, hasta acá'. En el ejercicio del poder punitivo llega un momento del proceso en que el acusado está solo, todos contra él. Hasta que llega un tribunal que dice: 'Vamos a ver cómo compensamos esto'" (op. cit., p. 48).

Os métodos pouco ortodoxos propostos por Zaffaroni para a modificação de leis penais também foram abordados. A estratégia é a seguinte: "Siempre estamos jugando con alternativas para reducir el ámbito del encarcelamiento. Incluso, queda claro que muchas de estas alternativas pertenecen a la legislación penitenciaria (...) hoy día se manejan códigos penales muy severos (...) pero después, en la ley penitenciaria, aparecen disposiciones que permiten de alguna manera ir reduciendo la pena, de modo que, en realidad, esas penas formalmente tan graves, en la práctica, representan un encierro mucho más breve. Que por qué se produce esto? Yo creo - y esto está pasando en muchos países en Latinoamérica - que es porque resulta mucho más fácil que una ley penitenciaria pase por un Congreso sin que ningún periodista cretino se dé cuenta, que una reforma al Código Penal, que generalmente es más escandalosa". (op. cit., p. 53).

Não é à toa que De Martini e cia. concluem: "En esa línea, Z. se permite ensayar curiosas formas de 'alternativas a la prisión', que consisten lisa e llanamente en no cumplir la ley. Si me parece que el texto, donde no hay argumentos sino una sarta de delitos - instigación a los delitos, de desobediencia, al delito de no perseguir los delitos, al delito de incumplimiento de los deberes de funcionario público, al delito de cohecho y, además, sus respectivas apologías" (op. cit., pp. 51-52).


O dia em que conheci Zaffaroni - parte II (recomendo que a leitura seja iniciada da parte I)

Siro M. A. De Martini é advogado e professor de Filosofia do Direito da Universidade Católica de Buenos Aires (UCA). Ex-professor de Filosofia do Direito e de Direito Penal da Universidade de Buenos Aires (UBA). Foi também juiz federal na cidade de Buenos Aires. Foi ele quem me apresentou Zaffaroni.

É claro que eu já sabia quem era Zaffaroni. Qualquer um que queira prestar concurso para o Ministério Público - inclusive e especialmente o Ministério Público de Minas Gerais - tem que se submeter a isso. Mas conhecer Zaffaroni apresentado por um operador do direito e acadêmico igualmente argentino é, convenhamos, muito mais honesto.

Guardadas as devidas diferenças - e influências -, é como um operador do direito e acadêmico brasileiro apresentar Gilmar Mendes para um gringo. Não se trata apenas de um grande constitucionalista - como um gringo provavelmente o reconheceria. É o grande constitucionalista que - e isso somente um brasileiro poderia complementar - soltou o banqueiro Daniel Dantas liminarmente (!), 2 (duas) vezes (!!), em tempo recorde, no silêncio da meia-noite, e que, no fim do ano passado, reclamou publicamente da decisão do ministro Marco Aurélio que, no apagar das luzes do ano passado, concedeu uma liminar esvaziando as competências da corregedoria nacional de Justiça (!!!).

Deu pra entender o que é ter Zaffaroni apresentado por um argentino?

O dia em que conheci Zaffaroni - parte I

Não dá pra esquecer. Se fosse você, leitor, no meu lugar, aposto que você também não se esqueceria. Foi em novembro/2010. Era minha segunda vez em Buenos Aires - se bem que poderia ser considerada a primeira, pois na vez anterior, foram apenas umas poucas horas em solo portenho. Como a maioria dos turistas, estávamos caminhando pela Calle Florida. Quando percebi já estava em frente à famosa livraria "El Ateneo". Um edifício extremamente bonito e convidativo. Entrei.

Depois de andar um pouco lá dentro, já bem perto da seção reservada às obras jurídicas, eu o vi. Como era de sua natureza, ele estava na parte destinada aos livros de direito penal. Encontrava-se cercado por todos os lados. Vi uns dois ou três bastante famosos perto dele. Humilde, porém, ele aparentava ser apenas um pequeno entre os grandes. Nenhuma afetação estética. Muito pelo contrário, uma figura quase banal. Como se não merecesse estar ali. Na verdade, parecia querer se passar por desconhecido. Virtude dos gênios?

Resolvi correr os olhos por alguns livros antes de me aproximar. Um pouco de incredulidade em vê-lo ali, misturado com um impulso de deixar o melhor por último, reservado. Quando já nada mais me interessava, vi que aquele era o momento para conhecê-lo. Sim, era ele: "En defensa del derecho penal", organizado por Siro M. A. De Martini. Com um título desses, caro leitor, na atual mesmice do direito penal, nem você se esqueceria.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Marcas do que se foi

Termina hoje o recesso forense. Isso significa que, a partir de amanhã, todas as Promotorias de Justiça de Minas Gerais voltam a funcionar em horário normal - assim como as Varas Judiciais.

Entretanto, antes de efetivamente começarmos 2012, vale a pena relembrar alguns trabalhos da 2ª Promotoria de Justiça de Diamantina realizados no já saudoso ano de 2011 - seguindo a linha que motivou a criação do blog.

Vamos então comentar en passant 3 (três) casos específicos que, devido às suas respectivas peculiaridades, merecem, a nosso ver, ser destacados:

1)- Após a representação formulada pelo Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) perante a 2ª Promotoria de Justiça, foi instaurado procedimento para investigar a qualidade das carnes bovina e suína comercializadas no Município de Diamantina. Vencida a fase de apurações, constatou-se que a esmagadora maioria dos açougues da cidade comercializava carnes provenientes de abates irregulares, sem qualquer tipo de controle sanitário ou ambiental - prática esta que expunha a população consumidora a inúmeras zoonoses.

Diante disso, a Promotoria apresentou aos comerciantes que se encontravam nessa situação proposta de Compromisso de Ajustamento de Conduta, a qual foi aceita por todos. Desse modo, findos os prazos estabelecidos para regularização, todos os açougues da cidade somente poderão comercializar carnes inspecionadas e provenientes de frigoríficos e/ou abatedouros devidamente licenciados pelos órgãos ambientais e sanitários competentes. Além disso, os comerciantes se obrigaram a a armazenar suas mercadorias em recipientes adequados, bem como regularizar seus alvarás sanitários e de localização e funcionamento.

O descumprimento dos prazos avençados implicará a suspensão da atividade, a apreensão e destruição das mercadorias, e a cobrança de multa diária de R$100,00 (cem reais), enquanto perdurar a omissão. Além disso, o infrator poderá ser responsabilizado penalmente pelo cometimento do delito previsto no art. 7º, IX, da Lei 8.137/90, cuja pena privativa de liberdade varia de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de detenção.

Os interessados podem acompanhar o andamento do procedimento na 2ª Promotoria de Justiça, bastando informar o número respectivo (021610000075-3).

2)- No mês de maio/2011 foi realizado o julgamento dos acusados pelo homicídio praticado contra o ex-vereador José César Barbosa de Souza, alcunhado "César Som". O crime ocorreu em meados do ano de 2005 e, não obstante sua repercussão, se encontrava até então pendente de resposta estatal.

O Tribunal do Júri, acolhendo na íntegra os argumentos da Promotoria, condenou João Izac Prates e Jackson Antônio Monteiro nas sanções do art. 121, parágrafo 2º, I e IV, do Código Penal, entendendo que o crime foi cometido mediante paga ou promessa de recompensa, bem como por motivo torpe, consistente no fato da vítima ter sido eleita para o cargo de vereador, sendo que João Izac Prates alcançara apenas a 2ª suplência. Além disso, os jurados entenderam que o crime foi cometido mediante recurso que dificultou a defesa do ofendido, uma vez que este foi colhido de surpresa quando chegava em casa.

O juiz presidente, observando o veredicto dos jurados, fixou a pena dos acusados João Izac Prates e Jackson Antônio Monteiro em 18 (dezoito) e 17 (dezessete) anos de reclusão, respectivamente.

Houve a interposição de recurso pela defesa, mas, em 21 de novembro de 2011, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve a condenação dos réus pelo homicídio duplamente qualificado, dando provimento parcial às apelações apenas para reduzir as penas.

A decisão, porém, ainda não transitou em julgado. Os interessados podem acompanhar o andamento processual no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (www.tjmg.jus.br), bastando digitar o número do processo (0337031-05.2005.8.13.0216).

3)- Após investigação realizada pela Promotoria de Justiça, a ex-delegada regional da Polícia Civil de Diamantina, Dolores de Oliveira Santos Baleeiro, foi condenada a 7 (sete) anos e 8 (oito) meses de reclusão em regime semiaberto, e ao pagamento de 426 (quatrocentos e vinte e seis) dias-multa, pela prática de corrupção passiva, estelionato, coação no curso do processo e falsidade ideológica. Foi também decretada a perda do cargo público de delegada de Polícia.

De acordo com a investigação, a ex-delegada regional solicitava e recebia vantagens indevidas de empresas na cidade de Diamantina, a fim de permitir que estas prestassem serviço de reboque e depósito de veículos à Polícia Civil.

Foi também apurado que a acusada solicitava dinheiro à Prefeitura Municipal a pretexto de custear o abastecimento de viaturas, apropriando-se das respectivas quantias. Além disso, a ex-delegada regional contingenciava o fornecimento de combustível às viaturas, de modo que o valor que restava da cota mensal era por ela apropriado.

Após o início das apurações, a acusada coagiu testemuhas e, com o apoio de Gelson Teixeira Fernandes, funcionário de uma empresa da cidade - também condenado por falsidade ideológica -, forjou ordens de serviço para justificar os valores por si arrecadados, embora tais serviços jamais tenham sido prestados.

Na sentença que acolheu os argumentos da Promotoria, foi ressaltado que "a corrupção é a grande vergonha do País", e que, "de braços dados com a impunidade, fomenta novos atos de corrupção, num ciclo vicioso lamentável, que traz prejuízos de monta à Administração Pública e ao cidadão de bem que paga seus impostos e espera a justa retribuição na forma de serviços públicos de qualidade".

Por se tratar de uma decisão de 1ª instância, ainda é possível a interposição de recurso. Os interessados podem acompanhar o andamento processual no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (www.tjmg.jus.br), bastando digitar o número do processo (0054255-53.2010.8.13.0216).

Resgatados à lembrança esses casos, fiquem os leitores cientes da situação em que se encontram atualmente. Comecemos amanhã, então, as nossas atividades para este ano, que promete ser árduo.

E que tenhamos na nossa Comarca um 2012 de muita saúde, paz e, sobretudo, JUSTIÇA!

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Quais são as atribuições da 2ª Promotoria de Justiça de Diamantina?

Para melhor situar o leitor que deseja acompanhar as notícias do blog, seguem algumas informações preliminares.

A Comarca de Diamantina é composta por 9 (nove) Municípios (Couto Magalhães de Minas, Datas, Diamantina, Felício dos Santos, Gouveia, Monjolos, Presidente Kubitschek, São Gonçalo do Rio Preto e Senador Modestino Gonçalves). O Ministério Público atua por intermédio de 3 (três) promotores, sendo o autor do blog titular da 2ª Promotoria.

Em linhas gerais, a 2ª Promotoria de Justiça de Diamantina possui atribuições cíveis e criminais, bem como no controle externo da atividade policial, na defesa da saúde, dos deficientes e idosos, e da ordem econômica e tributária.

A atuação do promotor de Justiça na área criminal é talvez a mais conhecida das pessoas, muito em razão do tribunal do júri. Nas causas penais, o Ministério Público funciona como autor da ação, exercendo a acusação pública imparcial. Vale dizer que os processos criminais não se resumem àqueles que versem sobre crimes contra a vida; se referem também aos crimes contra o patrimônio, contra a administração pública, contra a dignidade sexual, etc.

Na área cível, nosso papel é o de intervir nas causas em que há interesses de incapazes, nas causas concernentes ao estado da pessoa, poder familiar, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposição de última vontade, nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.

No que tange ao controle externo da atividade policial, compete ao Ministério Público fiscalizar o desempenho da atuação das Polícias Civil e Militar, promovendo a responsabilização dos agentes que eventualmente abusarem de sua autoridade ou se valerem dos cargos para a obtenção de vantagens ilegais.

Por sua vez, a defesa dos deficientes e idosos é exercida quando tais categorias tiverem seus direitos violados por ação ou omissão da família ou do Estado, ou mesmo em razão de suas próprias condutas.

Na defesa da ordem econômica e tributária, o Ministério Público é o responsável por promover a responsabilização penal daqueles que frustram a liberdade de concorrência, bem como dos sonegadores de impostos, buscando ainda a devolução dos valores respectivos aos cofres públicos.

Por fim, na defesa da saúde, o Ministério Público deve atuar de forma proativa visando assegurar o respeito a esse direito fundamental e indisponível que é de todos, além de propor, se necessário, ações judiciais para garantir o acesso do cidadão a transporte para tratamento fora de domicílio, medicamentos, exames, consultas médicas, cirurgias, etc.

Essas são, em apertado resumo, as atribuições da 2ª Promotoria de Justiça de Diamantina, às quais, nos anos de 2011 e 2012, foi acrescentada a fiscalização do cumprimento das normas de Direito Eleitoral - lembremos de que neste ano teremos eleições municipais!

A primeira postagem a gente nunca esquece!

Aqui estamos na nossa primeira postagem. Muito se diz que nós, promotores de Justiça, temos um déficit naquilo que se costuma chamar de "accountability" - palavrinha que, em linhas bem gerais, pode ser definida como o dever ético de prestar contas das nossas atividades. Alguns até chegam a dizer que o Ministério Público funciona como uma caixa-preta.

Considero, porém, que essa impressão é apenas uma meia-verdade. De fato, mesmo que uma determinada comunidade tenha um seu promotor de Justiça à conta de incompetente, estará ele no dia, no mês e no ano seguintes, muito provavelmente, no mesmo lugar, executando as mesmas funções. Afinal, diferentemente do que ocorre em outros países do mundo onde os promotores são escolhidos por eleição, no Brasil, o membro do Ministério Público que tiver vencido o estágio probatório exercerá o cargo em caráter vitalício. Não pretendo discutir neste momento se isso é bom ou ruim - pode até ser um assunto para uma futura postagem. É apenas um fato - que leva alguns à conclusão de que deixamos a desejar no "accountability".

Entretanto, poucos sabem que há sim mecanismos de prestação de contas a serem observados pelos promotores de Justiça brasileiros. Em Minas Gerais, especialmente, todos devem preencher um relatório mensal de atividades, no qual são informados número de denúncias criminais oferecidas, tipos de crimes denunciados, recursos interpostos, pareceres exarados, sentenças favoráveis, e por aí vai. Sem contar as informações encaminhadas pelas administrações superiores ao Conselho Nacional do Ministério Público.

Não se discute que a divulgação de todas essas informações à sociedade - destinatária primeira e última da nossa atuação funcional e razão da nossa existência institucional - pode e deve ser aperfeiçoada em termos institucionais, com a criação de mecanismos que as façam chegar ao maior número possível de pessoas. Para isso, porém, é necessário muito planejamento e investimento - daí o motivo pelo qual essa transparência vem progredindo em velocidade inferior ao que seria desejável.

De todo modo, para que não dependamos apenas das chefias institucionais, podemos os promotores de Justiça, individualmente, tentar melhorar nossa interlocução com a sociedade. Esse, então, foi o propósito que impulsionou a criação deste blog: agilizar e, sobretudo, dinamizar a nossa "accountability". Cabe apenas ressaltar - embora creiamos que já esteja óbvio - que essa é uma iniciativa pessoal do blogueiro, de modo que este não deve ser considerado um "espaço oficial".

A princípio, o blog funcionará em caráter experimental por alguns motivos. Primeiro, não tenho nenhuma familiaridade com essa ferramenta de comunicação - e também não posso assegurar que terei êxito no meu objetivo de manuseá-la de forma minimamente eficiente. Além disso, é certo que a manutenção de um blog exige um mínimo de dedicação específica do seu autor - e eu não sei se terei condições de me dedicar de forma proporcional à necessidade.

Quanto aos comentários dos leitores que nos derem a honra de sua visita, friso que não haverá qualquer tipo de "patrulhamento ideológico". O espaço é aberto para o registro de opiniões favoráveis ou contrárias às do blogueiro. Ressalta-se apenas que cada um é responsável pelas suas manifestações. Espera-se, porém, participações de alto nível, sem ofensas pessoais a quem quer que seja e sem o uso de palavras de baixo calão - daí porque a publicação dos comentários passará pelo crivo do moderador.

Enfim, feitos esses registros, "siga la pelota", como diria o narrador esportivo Milton Leite. Vida longa a este blog, que é nosso!